Semipresidencialismo às avessas: poder sem responsabilidade.

Na mesma semana, Fernando Haddad e Tarcísio de Freitas dizem que o Brasil adotou um modelo de parlamentarismo em que o Congresso impõe o orçamento, mas não se responsabiliza por ele. Já Arthur Lira sugere a adoção formal do semipresidencialismo.

Thiago Süssekind
6 min readApr 28, 2024
Um dos principais nomes da oposição, Tarcísio de Freitas, e um dos principais nomes do Governo, Fernando Haddad, lado a lado. Os dois se enfrentaram na disputa para governador de São Paulo (Foto: Poder360).

Na última semana, Fernando Haddad (PT) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) deram declarações muito similares sobre o poder acumulado pelo Congresso Nacional ao longo dos últimos anos. Os dois compararam o sistema político brasileiro atual ao parlamentarismo, e disseram que o Poder Legislativo tem os recursos, mas não a responsabilidade. Em comum, a experiência no Executivo, seguidamente esvaziado a partir das crises políticas da década passada e com cada vez mais apetite sobre o orçamento, pelo qual o Governo Federal, em tese, poderia imprimir as prioridades de agenda do presidente eleito.

“O Congresso está ficando com cada vez mais poder e cada vez com menos responsabilidade”, disse o governador de São Paulo e ex-ministro da Infraestrutura no Governo de Jair Bolsonaro (PL), na segunda-feira (22), em evento do grupo Esfera. “Então o Brasil vai caminhando para um Parlamentarismo sem ser um Parlamentarismo. Esse reequilíbrio a gente precisa proporcionar”, adicionou.

Já o ministro da Fazenda concedeu entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha, publicada no sábado (27), reclamando da atual configuração dos Poderes: “Há não muito tempo atrás, criar despesas e renunciar a receitas eram atos exclusivos do poder Executivo. O Supremo Tribunal Federal disse que o Parlamento também tem o direito de fazer o mesmo. Mas qual é o desequilíbrio? É que o Executivo tem que respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal. E o Parlamento, não”.

O governador de Goiás Ronaldo Caiado (União Brasil), que participou do mesmo evento do grupo Esfera, complementou com as suas impressões: “Eu convivi naquela casa [o Congresso] por 24 anos. Foram cinco mandatos como deputado e um como senador, e na nossa época não tinha R$ 1 milhão para comprar dois tratorzinhos. Hoje tem deputado com R$ 150 milhões, senador com R$ 300 milhões [de verba para gastar], enquanto tem ministro sem direito a definir nada”. Tarcísio concordou: “Quando eu estava no Ministério, às vezes recebia as bancadas e elas diziam para mim: ‘Ministro, eu preciso da sua ajuda para fazer essa obra’. Eu digo: ‘Tudo bem. Então vamos combinar uma coisa? Devolve o dinheiro para mim que eu faço essa obra para você. Porque vocês levaram o dinheiro todo, e os ministérios ficaram sem dinheiro para fazer a política pública’”.

É, de certa forma, um novo modelo de “parlamentarismo às avessas”, como ficou conhecido o sistema político do Império Brasileiro no século XIX. Ao contrário do que acontecia na Grã-Bretanha, onde o Parlamento era a instituição que realmente governava, quem mandava era o Imperador. Ele que indicava o Presidente do Conselho de Ministros, e só então o indicado – equivalente ao primeiro-ministro – formava o seu ministério, que deveria passar pela aprovação da Câmara. Detendo o Poder Moderador, Dom Pedro II podia tanto dissolver o Parlamento quanto demitir o chefe de Governo formal em caso de impasse entre os dois. Na prática, o Imperador influenciava nas eleições e a relação entre Câmara e Presidente do Conselho de Ministros costumava ser harmônica por sua influência, que buscava ainda promover um rodízio entre os dois principais partidos.

Nesse período recente da Nova República, com o presidencialismo de coalizão agonizando, o caso é o oposto. Foi o Executivo que perdeu o seu poder e influência ao longo dos últimos anos. A Presidência da República foi esvaziada em meio às crises políticas e o Congresso foi tomando parte desse espaço, mas sem adotar as responsabilidades que deveriam vir acompanhadas do dever de governar. É um semipresidencialismo às avessas.

O quadro político atual tal qual desenhado por dois adversários do Governo Lula (PT) e pelo seu principal ministro ajuda a entender algumas dificuldades do presidente neste mandato. Reflete, por exemplo, na falta de propostas em prol de indígenas e do meio ambiente, temas que enfrentam ampla resistência no Congresso.

Resistência, aliás, que decorre, em parte, de uma distorção de representatividade que o Brasil nunca vai se atrever a mudar. Com o Pacote de Abril, em 1977, quando a ditadura militar fechou o Congresso, o então presidente Ernesto Geisel aumentou o número mínimo de assentos dos estados menos populosos. A realidade é distinta nos Estados Unidos, por exemplo, onde o Alaska só tem um deputado. Afinal, o Senado existe justamente para dar poder igual às unidades federativas. Mas isso não importava para os militares, que queriam mesmo era fortalecer a ARENA às vésperas das eleições de 1978.

Deu certo, mas o “legado” institucional foi permanente. Até hoje, um deputado federal de São Paulo representa 630 mil pessoas, enquanto um congressista de Roraima representa apenas 80 mil. É um problema de representatividade: o voto do paulista vale 8 vezes menos que o do eleitor roraimense. Hoje, sete dos oito deputados de Roraima integram a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que institucionaliza a chamada “bancada ruralista”. Dentre os estados com o número mínimo de assentos definido pela Constituição, também integram a FPA sete dos oito congressistas de Tocantins, Mato Grosso do Sul — uma outra criação de Geisel, que ainda incorporou a Guanabara, mais simpática à oposição democrática, ao Rio de Janeiro — e todos os oito deputados eleitos por Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. Os números são de julho de 2023, quando a frente os atualizou pela última vez.

Esse é um dos problemas de transferir um poder extraordinário em momentos de urgência: ninguém se desfaz do poder adquirido por conta própria. Da mesma forma, hoje as emendas parlamentares pagas com o Orçamento Federal custam 179 vezes mais do que há 10 anos, segundo levantamento do Estadão. Em 2014 as emendas representavam 0,1% das despesas livres — isto é, da parcela do dinheiro público que o Poder Executivo tem disponível para escolher onde gastar. Só que, com as emendas, quem dá a ordem de onde precisa investir é o Poder Legislativo. Agora, a verba gasta com emendas já chega a 18%, ou cerca de R$ 34,5 bilhões. Em 2024, o número deve ser maior, mesmo com Lula tendo vetado, em janeiro, R$ 5,6 bilhões de emendas de comissão dos parlamentares.

É verdade que existem emendas diferentes uma das outras, mas o cenário atual é negativo. A falta de critérios técnicos, somada ao sistema eleitoral atual, faz com que o sequestro orçamentário pelo Legislativo tenha deixado algumas cidades esquecidas, sem recursos, e vizinhas com índices socioeconômicos similares com mais do que precisam. Em 2021, o Estadão deu o exemplo de Tauá e Mombaça, municípios vizinhos do sertão cearense. A União já havia empenhado R$ 151,4 milhões em emendas de relator para Tauá, algo como R$ 2.606,14 por habitante, e apenas R$ 2,9 milhões para Mombaça, número equivalente a R$ 67,12 por morador. O motivo se deve somente à conveniência política do deputado federal Domingos Neto (PSD), filho da prefeita de Tauá.

Isso sem falar em falta de transparência, que deixa a porteira aberta para a corrupção. Na briga recente entre Arthur Lira (Progressistas) e Alexandre Padilha (PT), um episódio específico provocou a ira do presidente da Câmara dos Deputados: uma portaria definia que a Secretaria de Relações Institucionais (SRI), chefiada pelo petista, seria informada sobre as indicações de emendas parlamentares repassadas a ministérios. Só isso — saber para onde os recursos do Legislativo estavam sendo encaminhados — já teria provocado uma disputa pública e barulhenta em Brasília.

Lira, por sinal, apareceu para falar sobre o mesmo tema que Tarcísio de Freitas e Fernando Haddad esta semana, mas com uma outra abordagem. Entre o evento do primeiro e a publicação da entrevista do segundo, o presidente da Câmara concedeu uma entrevista à GloboNews e defendeu que o Brasil deveria adotar o semipresidencialismo. Nada parece saciar o apetite do Congresso, nem mesmo o “parlamentarismo sem ser parlamentarismo” que Tarcísio de Freitas acredita que os brasileiros vivem hoje, ou a falta da responsabilidade que deveria acompanhar o poder, como reclama Haddad.

Semipresidencialismo não é sinônimo de um sistema estável, como o Peru ensina para a América do Sul anualmente. Mais do que isso, pensar nessa possibilidade com a atual configuração partidária, em que legendas são mais fisiológicas do que ideológicas, e com as distorções de representatividade do Congresso, é uma loucura. O caminho ideal deveria ser o inverso: convencer o Poder Legislativo a voltar para a sua caixinha de legislador e fiscalizador, deixando a gestão de recursos e as definições de prioridades para o Poder Executivo implementar a agenda escolhida para todo o país na eleição presidencial. É também o que a população deseja. Segundo pesquisa Quaest realizada em 2023, 74% dos brasileiros preferem o presidencialismo. No plebiscito de 1993, o parlamentarismo teve apenas 25% dos votos.

Só falta convencer deputados e senadores a abdicarem do poder em nome do país. Não parece muito fácil.

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Thiago Süssekind
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Written by Thiago Süssekind

Líder Estadual do Acredito-RJ (2020-2022) | Advogado | Direito-UERJ | Contato: tsussekind@hotmail.com | Twitter: @ThiagoSussekind

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